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sexta-feira, 8 de março de 2013

Sobre Catarina


Heloisa diz:

Ela tinha os olhos mais vivos que já vi...sempre curiosos, famintos de ler, acompanhados de ouvidos sempre atentos aos bons sons, tão poucas pessoas com esse dom. Levava sempre consigo não só a alegria, mas também uma caneta cheíssima de inspiração. Lembro-me bem de que nunca libertava os caracóis de seus cabelos... Achava-os feios, e aprisionava-os com indiferença. Eu gostava de suas manias ao andar pelas ruas de São Paulo: roer as unhas, olhos baixos, cruzar e descruzar os dedos, morder os lábios inferiores.

Sua risada, doce som. A alegria reestabelecida a qualquer funeral, inicio de qualquer festa. Suas lágrimas, sinônimo de mau tempo ( e também, de belos poemas). De quando em quando, sentia-se abandonada, sem ninguém no mundo. Encontrava-me, então, em seu anfiteatro, com meu papel coadjuvante: como, abandonada? Tinha a mim. Sua irmã, separada apenas pelo levíssimo impecílio do sangue, tão meramente social. Ela sorria aquele seu enorme sorriso de contentamento e satisfação, de mostrar todos os dentes, e me olhava com aqueles olhos de criança curiosa. Dizia: Eu não te amo.

Catarina diz:

Lembro-me dela

Lembro-me bem de seu rosto. De suas feições, seus contornos. Eram suaves, tão perfeitos. Tinha os olhos escuros, os cabelos encaracolados de cor de chocolate. Levava-os sempre soltos, afim de vê-los brincarem com o vento ao encontra-los. Tinha um belo sorriso. Verdadeiro. Luminoso, encantava a todos que tinham a felicidade de ver aquela beleza toda. Era realmente uma menina linda, de uma beleza desigual.

Ah, mas não era apenas algo físico. Tinha mais formosura nela. Era dona de um coração enorme. Nele, todos cabiam. Estava sempre disposta a acolher os abandonados, como eu. Nunca os deixava sozinhos. Tinha alma protetora, levava consigo um espírito humanitário. Abraçava a tristeza do próximo e a transformava em felicidade, com sua capacidade de fazer os outros sorrirem.

Tinha um dom especial, o de desenhar. Eram sempre realistas, pareciam belas fotografias. Enquanto os criava, via-se seus olhos brilharem, quase lágrimas formavam-se e começavam a escorrer. Era possível perceber sua paixão. Sua verdadeira vocação.

Dentre as tantas pessoas que entraram em minha vida, teve sempre um papel importantíssimo. Amiga. Sempre ao meu lado, fosse um momento feliz, fosse um momento triste. Lembro-me de suas palavras sabias para me acalmar. Lembro-me dela com carinho, guardo-a dentro do peito, para jamais esquece-la.



Os textos foram escritos em 2010.
Para Catarina.

terça-feira, 5 de março de 2013

Sobre você

Você me chamou num domingo. Veio assim, como quem não quer nada, falando comigo, perguntando como eu estava. Desconfiei: nem minha mãe, às vezes, me pergunta como estou. Mas dei de ombros. Recusei seu pedido de encontro, com um motivo falso e outro verdadeiro. O falso: teria de estudar para uma prova de física no dia seguinte. O verdadeiro: estava com medo. 


Claro que só lhe disse o falso.

Mas aí, eu pensei: "que se dane". E coloquei a primeira roupa que vi na frente. E soltei os cabelos ao vento. E corri rua abaixo, porque estava atrasada. E cheguei. E vi você. E fingi que não vi. E estava com medo.

Foi você quem teve de sair do seu canto e sorrir pra mim. Você disse: "Helô?" e sorriu pra mim. E isso me fez sorrir, também, porque eu gostei do seu sorriso. Você, alto, meio desajeitado, com roupas esportivas, barbeado e com cheirinho de banho. E tinha sorrido pra mim. Tive vontade de abraçá-lo, e foi o que fiz. Depois do abraço, foi uma sucessão de iogurte de morango, papo, olhares furtivos, mão suadas, tremedeiras disfarçadas, sorrisos, indiretas e um convite para o cinema. Quase recusei pelos mesmo dois motivos, mas, dessa vez, o "que se dane" veio antes do medo.

Aí, compramos balas de morango. Ficamos sentados num banco, alternando entre tentar beijar e evitar o beijo. Bochechas quentes e mãos tremendo. Eu tropecei ao entrar no cinema e você riu comigo. O filme começou e não prestamos atenção nele. Depois do filme, você me abraçou e eu perguntei se você tinha gostado de mim, porque eu tinha gostado de você.

E você me ligou no dia seguinte.
E eu tirei 9,9 na prova de física.

segunda-feira, 4 de março de 2013

Sobre internet

Às vezes, eu fico meio revoltada porque não consigo sair da frente do computador e sei que quando eu for velhinha vou sofrer as consequências.

Acho que estou perdendo cada momento "infinito e breve" que acontece por aí.

Bom, que se dane, tenho duas atualizações no Facebook.

Sobre ligações da vovó

– Alô?
– Alô, filhinha? – é aquela voz, velha conhecida minha, a mesma que anunciava bolos e brigadeiro na infância.

Com uma pontada, eu percebo que não falo com ela há algumas semanas. Que triste. Costumávamos ser confidentes, cada mínimo detalhe da escola contado como se fosse uma aventura, respondido com uma peripécia de meu avô, por horas a fio.
– Oi, vó. Tudo bem com você? – eu queria que ela perguntasse porque é que a gente parou de se falar tanto quanto antes.
– Aqui tá tudo bem, sim. E com vocês? – odeio esse plural. Queria que ela perguntasse como eu estou. Queria mesmo. Porque não estou bem, estou com muita saudade.
– Tudo bem. E o vovô? – eu queria que ele pedisse para falar comigo. 
– Ele tá bem. E o namorado? (risos) – não sei por que ela sempre ri quando fala do Felipe. Acho que é vergonha, sei lá. Tenho inveja dele, que tem os avós tão perto de casa. Meus avós moram a quase trezentos quilômetros de mim. Acho que a distância vai apagando as coisas.
– Ele tá bem, também. mandou um abraço (risos). – nem sempre ele mandou.

Pausa chata. Eu escuto a respiração dela. Ao longe, os cachorros latem para algum carro da rua. Uma bicicleta buzina. Deve ser o padeiro. Minha avó mora numa cidade onde os padeiros ainda andam de bicicleta. Ou serão os sorveteiros?

– Tá calor aí, né? Sua mãe me disse que está. – ela retoma o papo. Eu queria que ela me contasse como foi seu dia e se ainda está fazendo aulas de informática.
– Sim, tá calor demais! Parece até que estou aí! – a cidade dela é mesmo muito quente. Lembro-me de tomar banho de mangueira quando o calor estava insuportável. Depois, minha avó me mandava direto pro banho, porque meus pés ficavam pretos da fuligem que caía da Siderúrgica Nacional. –... vó, eu vou ver você nas férias, viu?
– Ah, filha, vem sim! A vovó tem tanta saudade de você!
Outra pausa. Dessa vez, escuto o Jornal Nacional começando. Tenho inveja da minha mãe, que consegue conversar com a vovó por meia hora sem parar nem gritar que está com saudade.
– Bom, manda um beijão pra todo mundo aí. – espero que ela mande mesmo. Porque eu vou mandar o beijo que ela vai pedir pra eu mandar.
– Outro, filha! Outro. Tchau!
– Vó? Eu te amo!

Mas a linha já está muda. Do outro lado, só o TUTUTU me responde.

sexta-feira, 1 de março de 2013

Sobre mascotes resgatados

Jerí, a gatinha nordestina, quando chegou em casa
Lá estava eu, toda esticada numa cadeira, curtindo o sol nordestino. Tentando eliminar a esperança e preocupação do vestibular. Lendo minha Agatha Christie.  Eis que minha mãe chega toda esbaforida na praia: "você não vai acreditar no que eu achei!". Eu segui seus pulinhos característicos até um quartinho da piscina do hotel. Lá de dentro, ela trouxe um embrulho de toalhas e tapetes de banheiro. A primeira coisa que consegui ver foi um par de patinhas minúsculas. O menor dos gatinhos, choramingando, logo levantou sua cabecinha e abriu seus olhinhos ainda cegos.


"A mãe a abandonou há uns três dias. Já ligamos para a companhia aérea, mas eles não permitem que gatos com menos de três meses viajem de um estado para o outro", disse minha mãe, chorosa. Lhe demos o nome de Jerí, em homenagem a Jericoacoara, onde estávamos.



A Jeri logo ganhou o amor de todos. Fraquinha, ela só conseguia mamar em uma seringa de insulina que minha doutora mãe sempre carrega, sabe-se lá porquê. E sentia frio o tempo todo. E chorava pela mãe. E dormia na palma da minha mão. Até meu padrasto, que é sempre frio nessas situações, se derreteu com a pequenininha. Pelo resto da semana, tentamos, em vão,  fazer com que a mãe de Jeri a aceitasse de volta (aliás, depois, descobrimos que a "mãe" era, na verdade, um gato macho que devorava gatinhos filhotes). Sabíamos que, se a deixássemos, ela morreria, fosse "de morte morrida", fosse "de morte matada". Não demorou muito e minha mãe começou com suas loucuras: "vamos levar essa gata."



O problema: eram seis horas de carro até Fortaleza, mais três de avião até São Paulo. O plano: compraríamos uma pochete sem nenhum metal e daríamos, com a ajuda de uma piedosa veterinária local, sedativo para a gatinha, que dormiria na pochete até chegarmos.



Mas, claro, nada saiu como planejado.



O carro em que estavam meu padrasto, meu irmão e a namorada quebrou no meio da estrada, atrasando ainda mais o plano. Minha mãe começou a ter um ataque de nervos. Meu padrasto começou a gritar no telefone. Minha irmã começou a chorar e meu namorado, que é todo certinho, entrou em choque. Para piorar, minha mãe acabou dando muito pouco sedativo para a gatinha, que acordou bem na hora de passar pelo detector de metais. Durante as três horas de vôo, a tensão podia ser cortada com uma faca e, quando finalmente o comandante anunciou a aterrissagem, Jerí deu um miado federal (que minha irmã escondeu com uma encenação de manha que renderia o Oscar).

Enfim, chegamos. Jerí sobreviveu, minha mãe não teve um colapso e nós não fomos presos por tráfico de animais silvestres. Hoje, ela está com quase 1Kg, brinca com qualquer coisa que se mexa e dorme enrolada nas minhas pernas toda tarde.



Os melhores bichinhos de estimação são os que salvamos.



quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Sobre acabar a luz


Eu gosto quando acaba a luz.

A gente senta na janela de casa e fica lá, olhando a parte iluminada da cidade. Suspira (!). Se desconecta de twitterfacebookblogemailtumblrflickrgooglewikipediayoutube. Até tem tempo pra conversar e jogar jogo-da-velha com nossos avós. E ouvir "estórias" como se ouvia antigamente, em torno da "fogueira" formada pelas luzes distantes.

Eu gosto quando falta luz. A gente lembra o quanto é pequenininho, dependente, e quanta gente mais há por aí. A TV e o computador ficam olhando pra gente, esquecidos por uns minutos (ou até, se tivermos sorte, horas) preciosos. A gente dorme cedo, porque a casa está aconchegante assim, toda cheia de velas. A gente lembra de olhar pro céu.

A gente lembra que existe um céu.

Eu gosto quando falta luz, mas hoje não faltou.

Sobre mortos-vivos


Hoje de manhã, eu estava no ônibus lotado e atrasado e fiquei pensando o que aconteceria se, naquele momento, eu gritasse: "SOCORRO! UM ZUMBI!"

Provavelmente nada.

Ainda assim, eu imaginei as pessoas fugindo, desesperadas. Imaginei o motorista pedindo calma, alguém ligando para a polícia, uma mulher rezando, uma criança largada chamando a mãe e vários curiosos parados na rua: o pânico se disseminava. Me imaginei descendo pela janela, correndo rua abaixo (aliás, rua, não. Avenida Brigadeiro, que é uma baita ladeira), gritando por socorro e descobrindo que as pessoas para quem eu pedia ajuda já estavam contaminadas com "a praga". 



Uma garota vestida com seu uniforme do McDonald's passa correndo por mim e grita: "por aqui!". Eu vôo atrás dela, rezando para que os mortos-vivos sejam bem lerdos. Paramos para descansar atrás de uma caçamba.
"O que é isso?! Que tá acontecendo?", eu pergunto. Ela me olha como se eu fosse retardada e sussurra: "fala baixo. Eles podem ouvir você"  – ela marca bem o "ouvir". "ah, entendi", eu respondi, bem baixinho. 

Nós saímos do nosso esconderijo, agachadas. "você vai por ali", ela aponta para a esquerda, "não podemos atrair a atenção. Vai rápido, eles estão vindo!"
Sem pensar duas vezes, eu corro para a Alameda Santos. Olho para trás e vejo dezenas de mortos se arrastando na minha direção. Um deles ainda usa o uniforme de cobrador. Quando olho para frente, vejo uma enorme raiz de árvore solta no chão. Percebo que é tarde demais para desviar, tropeço e caio de cara no chão.



Não há mais o que fazer; a multidão de mortos famintos e em decomposição já me rodeia. Eu fecho os olhos e aceito o meu destino...

"você vai descer nesse ponto?"

Abro os olhos, confusa. Meu ponto tinha chegado.



Acho que eu tenho algum problema.